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quatro contribuições da luta antimanicomial para a luta política - parte III de III

Atualizado: 15 de fev. de 2022


Colagem por @atofalh0

O breve e incendiário ensaio “Quatro Contribuições da Luta Antimanicomial para a Luta Política” foi enviado pelo autor, Dassayeve Távora Lima, em meados de novembro, logo após, o texto foi preparado e revisado pela editora para a publicação.

 
“Definitivamente, não se defende aqui uma liberdade que se confunda com consumo ou que se traduza em uma atomista liberdade individual – a liberdade, como diria Bakunin, só se confirma à medida em que é, ela mesma, uma liberdade coletiva.”
 

Liberdade como valor

Por fim, a luta antimanicomial nos permite pensar que, em última análise, toda e qualquer luta política anti-opressão é uma luta por liberdade, e esta, como diria Angela Davis, é uma luta constante. Atribuída a Franco Basaglia, uma das grandes máximas da luta antimanicomial é a expressão: a liberdade é terapêutica. A potência dessa expressão é enorme, principalmente porque ela remete a algo muito mais amplo e universal, que não se inicia e nem reduz ao campo da saúde mental. A liberdade, como possibilidade de desenvolvimento das potencialidades e expressões humanas, deve ser considerada um valor comum e pelo qual importa lutar.

Piotr Kropotkin, em seu ensaio “As prisões”, ao direcionar sua crítica para o total fracasso e desumanização do sistema carcerário, faz um paralelo entre este e os sanatórios e manicômios. Segundo ele, “nenhuma medicina compete com a liberdade”:


"Os sanatórios são prisões também. Longe de mim as ideias lançadas por senhores filantropos, que querem manter as prisões mas encarregá-las a médicos e pedagogos. Os presos seriam ainda mais infelizes; sairiam dos sanatórios mais quebrados que das prisões atuais. [...] [As] faculdades superiores do coração e da inteligência não se exercitam se o homem está privado de liberdade, na impossibilidade de trabalhar como queira e de sujeitar-se às múltiplas influências da vida social. [...] As prisões pedagógicas, a casa de saúde, trariam piores consequências que os cárceres e presídios em uso. A fraternidade humana e a liberdade são os únicos corretivos para as enfermidades do organismo humano, que o convertem em delinquente. [...] Nenhuma medicina compete com a liberdade, com o trabalho livre, com o fraternal carinho" (KROPOTKIN, 2003).

Em linhas gerais, essa é a essência do que é a luta antimanicomial: uma luta pela liberdade em suas mais diversas formas e possibilidades. Por isso, suas raízes partem de um compromisso profundo de luta contra todo e qualquer tipo de opressão, violência, estigmatização e negação de direitos - ainda que concedidos dentro da lógica de Estado burguesa. Tal compromisso pode ser sintetizado de forma exemplar no manifesto chamado “Carta de Bauru”, de dezembro de 1987, pela ocasião do II Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental. No documento, considerado um marco e um ponto de virada do movimento da luta antimanicomial – que agora não se limitava apenas à profissionais e pesquisadores da área, mas agregava também usuários, familiares, militantes organizados em sindicatos, movimentos sociais, etc. –, se apresenta de forma literal e objetiva que a luta antimanicomial não se restringe à pauta do fim dos manicômios, mas à luta pelo fim de todas as estruturas de opressão presentes na sociedade capitalista. Mais que isso, amplia a noção de manicômios como não apenas uma estrutura física, mas como estrutura de dominação e violência que guarda similaridade com outros sistemas de opressão.

O Estado que gerencia tais serviços é o mesmo que impõe e sustenta os mecanismos de exploração e de produção social da loucura e da violência. O compromisso estabelecido pela luta antimanicomial impõe uma aliança com o movimento popular e a classe trabalhadora organizada.

O manicômio é expressão de uma estrutura, presente nos diversos mecanismos de opressão desse tipo de sociedade. A opressão nas fábricas, nas instituições de adolescentes, nos cárceres, a discriminação contra negros, homossexuais, índios, mulheres. Lutar pelos direitos de cidadania dos doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida.

Não cabe, para os fins deste escrito, explorar a polissemia da palavra liberdade. Sim, estou ciente de que a palavra liberdade pode ser lida de forma genérica e abstrata, dando a entender que estamos somando vozes à falsa liberdade propagandeada pelo liberalismo. No entanto, ressalta-se que a compreensão que aqui se faz de liberdade nada tem a ver com a “liberdade” do liberalismo – esta que nada tem de livre. Tenho total acordo com Adorno quando este critica a falsa e ideológica liberdade tal como compreendida pelos liberais:

As pessoas manipularam a tal ponto o conceito de liberdade, que ele acabou por se reduzir ao direito dos mais fortes e mais ricos de tirarem dos mais fracos e mais pobres o que estes ainda têm. As tentativas de modificar isso são encaradas como intromissões lamentáveis no campo do próprio individualismo, que, pela lógica dessa liberdade, dissolveu-se num vazio administrado. [...] não há liberdade enquanto tudo tem um preço e, na sociedade reificada, as coisas isentas do mecanismo de preço só existem como rudimentos lamentáveis (ADORNO, 1996, p.41).

O liberalismo distorceu de tal forma a ideia de liberdade que a única liberdade que eles entendem é a da circulação de mercadorias, da venda da força de trabalho, da espoliação, da exploração e da alienação. Definitivamente, não se defende aqui uma liberdade que se confunda com consumo ou que se traduza em uma atomista liberdade individual – a liberdade, como diria Bakunin, só se confirma à medida em que é, ela mesma, uma liberdade coletiva. A liberdade que aqui defendemos, que serve tanto à luta antimanicomial quanto à luta política de forma mais ampla, é a liberdade de ser mais, tal como apontado por Paulo Freire. É a liberdade de, enquanto sujeito, ver-se livre de toda e qualquer forma de opressão, exploração e despontencialização. É essa liberdade, enquanto possibilidade de desenvolvimento de uma existência desalienada, não-coisificada e não-institucionalizada, que a luta antimanicomial pode e deve lembrar o porquê e pelo que vale a pena lutar.

Últimas linhas

Todo escrito é sempre incompleto. Alguns mais, outros menos, mas, invariavelmente, sujeito a lacunas, brechas, lapsos, enfim, é sempre uma expressão que denuncia a falta propriamente humana. Existem diversos outros elos possíveis entre a luta antimanicomial e a luta política, e, cada um desses pontos, renderiam teses e mais teses de produção de conhecimento.

Aqui, decidi por apontar apenas alguns dos pontos que, para mim, são mais evidentes neste momento histórico em que vivemos – estes mesmos, obviamente inconclusivos e insuficientes. Por fim, mais do que esgotar o tema e apresentar um panorama geral da interseção entre os que lutam por uma sociedade sem manicômios e aqueles militam em outras arenas de luta, este texto é um convite para que pensemos a luta antimanicomial não mais como uma luta secundária, mas como uma bandeira urgente e necessária, que deve ser reivindicada por todos aqueles que lutam pela construção de um outro modelo de sociedade, orientada por um outro horizonte civilizatório.

Por uma sociedade sem manicômios! Todos eles!

 

REFERÊNCIAS: ADORNO, T.. Mensagens numa garrafa. In. Zizek, S. (org.). Um mapa da Ideologia. – Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado (Notas para uma investigação). In. Zizek, S. (org.). Um mapa da Ideologia. – Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. BASAGLIA, F.. Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica. – Rio de Janeiro: Garamond, 2010. DUNKER, C. I.. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. – 1 ed. – São Paulo: Boitempo, 2015. FANON, F. Alienação e Liberdade: escritos psiquiátricos. – São Paulo: UBU Editora, 2020. FREIRE, P.. Pedagogia do Oprimido. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. KROPOTKIN, P.. As prisões. São Paulo, Index Librorum. Prohibitorum, 2003. MANIFESTO DE BAURU. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2017/05/manifesto-de-bauru.pdf. Acesso em: 14/11/2020.

 

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