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Atualizado: 27 de jan. de 2022


 

-Se você continuar só olhando para a xícara seu café vai esfriar.

-Ah, obrigado, mas é que não consigo beber ele assim tão quente.

-Você é daqui mesmo? Acho que é a primeira vez que te vejo sentado nesse lugar.

-Não, estou de passagem.

-De passagem? Quem, em sã consciência, passa por aqui?

-Eu, ué.

-Desculpa, não quis me intrometer.

-Não, não, eu estava distraído, eu é quem peço desculpa.

-Tá.

-Na verdade, eu vim entregar essa encomenda, mas estou tendo dificuldade pra encontrar o endereço, então decidi parar um pouco de procurar.

-Deixa eu ver, quem sabe posso te ajudar.

-Claro.

-Hum, desculpa, eu sou daqui, inclusive moro nessa rua que tá anotada no envelope, mas nunca ouvi falar desse número. A rua vai só até o número 1936, o meu prédio.

-Tem certeza?

-Por qual motivo eu mentiria?

-Você mentiria por algum motivo?

-Muitos, mas não pra você, não nessa situação.

-Ah, tá. De qualquer forma, preciso encontrar esse endereço até meio dia, sem falta.

-Você não vai encontrar.

-Como não vou encontrar?

-Te disse, o prédio onde moro é o último da rua e o número dele é o que te falei, depois disso a rua já ganha outro nome, atravessando aquela avenida ali no fundo, tá vendo? Não tem nada ali.

-Sim, sim. De qualquer maneira, preciso procurar por esse número.

-O que você traz no envelope?

-Eu? Hum, na verdade, não sei, não abri, trabalho como mensageiro.

-Um mensageiro que desconhece a própria mensagem?

-Não, não, esse envelope não é meu, é do meu chefe, ele que me pediu pra entregar nesse endereço. Que estranho! Você tem certeza que esse número não existe?

-Você não ficou curioso pra abrir o envelope e descobrir o que tem dentro?

-Claro.

-E porque não fez isso?

-Por qual motivo eu faria? Não quero perder meu emprego.

-Se você perder esse, você arruma outro, ué. Melhor do que ficar curioso.

-Eu não posso.

-Eu sei.

-Obrigado pelo café, estava realmente muito bom.

-É requentado de ontem. Tá vendo, você também mente.

-É, quem não mente, né?

-Viu! Abre o envelope pra gente ver o que tem dentro, eu também fiquei curiosa agora, depois a gente cola e você mente, como acabou de fazer.

-Não posso.

-Esse endereço nem existe.

-Claro que existe, porque meu chefe me mandaria entregar um envelope pra um endereço que nem existe?

-Me responde você, porque seu chefe te mandaria entregar um envelope pra um endereço que nem existe?

-Ele não perderia esse tempo todo.

-Não é ele quem tá perdendo tempo.

-Olha, eu vou indo, já me alonguei demais aqui, já são onze e meia, preciso entregar isso antes da meio dia, urgente.

-Entregar onde?

-Ah, vou procurar, talvez estejam construindo algo novo além do seu prédio.

-Eu teria visto. Você conseguiria ver daqui.

-Às vezes passou despercebido por você, por mim.

-Não passaria. Pelo menos por mim.

-Ok.

-Posso abrir o envelope pra você então? Assim você não se sente culpado e não precisa mentir.

-Claro que não. E outra, quem é você? Eu não te conheço.

-Ué, eu sou a pessoa que te serviu esse café, que puxou papo.

-Sim, mas você entendeu o que eu quis dizer.

-Entendi sim.

-Bom, vou lá.

-Opa, espera, você não vai me deixar saber o que tem dentro desse envelope?

-Olha, eu realmente não quero perder esse emprego. Preciso muito dele.

-De quem? Do seu chefe?

-Não, não, do emprego. A situação tá difícil, o país todo tá em crise, várias pessoas que conheço já foram mandadas embora. Eu realmente preciso desse emprego.

-Tá bem, tá bem.

-Ok?

-Sim, mas eu aposto que aí dentro deve ter algo bem interessante. O que você acha que é?

-Não sei.

-Não faz nem ideia?

-Não.

-Eu faço.

-Tá.

-Eu acho que é uma carta.

-Uma carta?

-Sim.

-Hoje em dia existe e-mail, ninguém mais manda carta.

-O que é então?

-Não sei, já disse.

-Poderia ser um convite!

-Convite?

-É! Pra alguma festa mais formal, algo que não se pode mandar por e-mail.

-Meu chefe não gosta de festas, ele gosta de viajar, voltou recentemente dos Estados Unidos. Uma viagem que fez com a família toda.

-Hum, eu gosto de viajar para ver o mar. E, viu, não muda de assunto, me diz, e se ele estiver te testando?

-Me testando?

-Sim, ué, ele te manda entregar um envelope em um endereço que nem existe e nem te fala o que tem dentro dele.

-E?

-Pode ser que ele queira saber se você conseguiu entregar ou não.

-Como eu vou entregar algo em um endereço que nem sequer existe?

-Pois é, é o que estou dizendo, é um teste!

-Meu chefe não faria isso. Se eu não encontrar o endereço, vou simplesmente devolver o envelope pra ele e dizer que o endereço não existe. Ele pode ter errado o número na hora de escrever e só.

-E se ele estiver testando sua capacidade?

-Minha capacidade?

-Sim.

-Mas como?

-Veja, vamos supor que você volte e diga pra ele que não encontrou o endereço, qual vai ser a primeira reação dele?

-Ele vai ficar bem puto, me chamar de incompetente e mais um monte de coisa, mas depois vai olhar pela internet e ver que de fato o endereço não existe.

-E se ele encontrar o endereço na internet?

-Mas você tava me dizendo até agora que o endereço não existe!

-De fato não existe, mas eu nunca pesquisei na internet, pode ser que na internet esse endereço exista, pode ser um erro. Calma, deixa eu pesquisar.

-Pesquisar o que?

-O endereço.

-Tá.

-Viu! Te falei, é um teste! Olha aqui o endereço.

-Ah, que ótimo, então o endereço existe mesmo, vou lá.

-Não, o endereço não existe.

-Mas apareceu na sua busca!

-Eu sei. Mas não existe, já te disse.

-Que tipo de teste é esse que eu não sou nem capaz de tentar então?

-Pois é.

-Pois é o que?

-Vamos supor que você volte com o envelope, entregue pra ele, fale que o endereço não existe. Vamos supor que ele pesquise e encontre o endereço, da mesma maneira que eu encontrei. O que ele faria?

-Ele me disse que era a entrega mais importante que ele já tinha pedido pra eu fazer.

-O que ele faria?

-Provavelmente me mandaria embora, já pisei na bola outras vezes. Minha filha ficou doente e fiquei com ela três dias no hospital, sem aparecer no trabalho.

-Mas você não avisou?

-Avisei sim.

-Entendo, e como ela tá?

-Tá bem, tá ótima na verdade. Ela deve ter a sua idade.

-Que bom.

-Você acha que ele me mandaria embora?

-Não é isso que os chefes fazem com os funcionários que não servem mais para o trabalho?

-Eu sirvo para o trabalho.

-Não é isso que ele vai pensar se você voltar com o envelope dizendo que o endereço não existe.

-Eu não vou mentir, qualquer coisa ele pode vir pessoalmente conferir.

-Você acha mesmo que ele viria até aqui?

-É bem longe, né?

-Sim.

-O que eu faço?

-Procure outro emprego.

-Com a minha idade?

-Então minta, é a única salvação.

-Eu não posso fazer isso, se ele me pega mentindo, aí mesmo que ele me manda embora.

-Ele vai te mandar embora de qualquer jeito.

-Porque você diz isso?

-Se ele não quisesse te mandar embora, ele não te faria perder tempo indo atrás de um endereço que nem existe, pra entregar um envelope que nem sabemos o que tem dentro. Já parou pra pensar que pode não ter nada aí?

-Como assim?

-Abre o envelope, vamos descobrir se é um teste. Se não tiver nada dentro ele realmente estava te testando!

-Não posso, já disse, preciso do meu emprego.

-Você quem sabe.

-Sim.

-Boa sorte.

-Obrigado pelo café.


Texto por Alex Peguinelli.



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