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-Se você continuar só olhando para a xícara seu café vai esfriar.
-Ah, obrigado, mas é que não consigo beber ele assim tão quente.
-Você é daqui mesmo? Acho que é a primeira vez que te vejo sentado nesse lugar.
-Não, estou de passagem.
-De passagem? Quem, em sã consciência, passa por aqui?
-Eu, ué.
-Desculpa, não quis me intrometer.
-Não, não, eu estava distraído, eu é quem peço desculpa.
-Tá.
-Na verdade, eu vim entregar essa encomenda, mas estou tendo dificuldade pra encontrar o endereço, então decidi parar um pouco de procurar.
-Deixa eu ver, quem sabe posso te ajudar.
-Claro.
-Hum, desculpa, eu sou daqui, inclusive moro nessa rua que tá anotada no envelope, mas nunca ouvi falar desse número. A rua vai só até o número 1936, o meu prédio.
-Tem certeza?
-Por qual motivo eu mentiria?
-Você mentiria por algum motivo?
-Muitos, mas não pra você, não nessa situação.
-Ah, tá. De qualquer forma, preciso encontrar esse endereço até meio dia, sem falta.
-Você não vai encontrar.
-Como não vou encontrar?
-Te disse, o prédio onde moro é o último da rua e o número dele é o que te falei, depois disso a rua já ganha outro nome, atravessando aquela avenida ali no fundo, tá vendo? Não tem nada ali.
-Sim, sim. De qualquer maneira, preciso procurar por esse número.
-O que você traz no envelope?
-Eu? Hum, na verdade, não sei, não abri, trabalho como mensageiro.
-Um mensageiro que desconhece a própria mensagem?
-Não, não, esse envelope não é meu, é do meu chefe, ele que me pediu pra entregar nesse endereço. Que estranho! Você tem certeza que esse número não existe?
-Você não ficou curioso pra abrir o envelope e descobrir o que tem dentro?
-Claro.
-E porque não fez isso?
-Por qual motivo eu faria? Não quero perder meu emprego.
-Se você perder esse, você arruma outro, ué. Melhor do que ficar curioso.
-Eu não posso.
-Eu sei.
-Obrigado pelo café, estava realmente muito bom.
-É requentado de ontem. Tá vendo, você também mente.
-É, quem não mente, né?
-Viu! Abre o envelope pra gente ver o que tem dentro, eu também fiquei curiosa agora, depois a gente cola e você mente, como acabou de fazer.
-Não posso.
-Esse endereço nem existe.
-Claro que existe, porque meu chefe me mandaria entregar um envelope pra um endereço que nem existe?
-Me responde você, porque seu chefe te mandaria entregar um envelope pra um endereço que nem existe?
-Ele não perderia esse tempo todo.
-Não é ele quem tá perdendo tempo.
-Olha, eu vou indo, já me alonguei demais aqui, já são onze e meia, preciso entregar isso antes da meio dia, urgente.
-Entregar onde?
-Ah, vou procurar, talvez estejam construindo algo novo além do seu prédio.
-Eu teria visto. Você conseguiria ver daqui.
-Às vezes passou despercebido por você, por mim.
-Não passaria. Pelo menos por mim.
-Ok.
-Posso abrir o envelope pra você então? Assim você não se sente culpado e não precisa mentir.
-Claro que não. E outra, quem é você? Eu não te conheço.
-Ué, eu sou a pessoa que te serviu esse café, que puxou papo.
-Sim, mas você entendeu o que eu quis dizer.
-Entendi sim.
-Bom, vou lá.
-Opa, espera, você não vai me deixar saber o que tem dentro desse envelope?
-Olha, eu realmente não quero perder esse emprego. Preciso muito dele.
-De quem? Do seu chefe?
-Não, não, do emprego. A situação tá difícil, o país todo tá em crise, várias pessoas que conheço já foram mandadas embora. Eu realmente preciso desse emprego.
-Tá bem, tá bem.
-Ok?
-Sim, mas eu aposto que aí dentro deve ter algo bem interessante. O que você acha que é?
-Não sei.
-Não faz nem ideia?
-Não.
-Eu faço.
-Tá.
-Eu acho que é uma carta.
-Uma carta?
-Sim.
-Hoje em dia existe e-mail, ninguém mais manda carta.
-O que é então?
-Não sei, já disse.
-Poderia ser um convite!
-Convite?
-É! Pra alguma festa mais formal, algo que não se pode mandar por e-mail.
-Meu chefe não gosta de festas, ele gosta de viajar, voltou recentemente dos Estados Unidos. Uma viagem que fez com a família toda.
-Hum, eu gosto de viajar para ver o mar. E, viu, não muda de assunto, me diz, e se ele estiver te testando?
-Me testando?
-Sim, ué, ele te manda entregar um envelope em um endereço que nem existe e nem te fala o que tem dentro dele.
-E?
-Pode ser que ele queira saber se você conseguiu entregar ou não.
-Como eu vou entregar algo em um endereço que nem sequer existe?
-Pois é, é o que estou dizendo, é um teste!
-Meu chefe não faria isso. Se eu não encontrar o endereço, vou simplesmente devolver o envelope pra ele e dizer que o endereço não existe. Ele pode ter errado o número na hora de escrever e só.
-E se ele estiver testando sua capacidade?
-Minha capacidade?
-Sim.
-Mas como?
-Veja, vamos supor que você volte e diga pra ele que não encontrou o endereço, qual vai ser a primeira reação dele?
-Ele vai ficar bem puto, me chamar de incompetente e mais um monte de coisa, mas depois vai olhar pela internet e ver que de fato o endereço não existe.
-E se ele encontrar o endereço na internet?
-Mas você tava me dizendo até agora que o endereço não existe!
-De fato não existe, mas eu nunca pesquisei na internet, pode ser que na internet esse endereço exista, pode ser um erro. Calma, deixa eu pesquisar.
-Pesquisar o que?
-O endereço.
-Tá.
-Viu! Te falei, é um teste! Olha aqui o endereço.
-Ah, que ótimo, então o endereço existe mesmo, vou lá.
-Não, o endereço não existe.
-Mas apareceu na sua busca!
-Eu sei. Mas não existe, já te disse.
-Que tipo de teste é esse que eu não sou nem capaz de tentar então?
-Pois é.
-Pois é o que?
-Vamos supor que você volte com o envelope, entregue pra ele, fale que o endereço não existe. Vamos supor que ele pesquise e encontre o endereço, da mesma maneira que eu encontrei. O que ele faria?
-Ele me disse que era a entrega mais importante que ele já tinha pedido pra eu fazer.
-O que ele faria?
-Provavelmente me mandaria embora, já pisei na bola outras vezes. Minha filha ficou doente e fiquei com ela três dias no hospital, sem aparecer no trabalho.
-Mas você não avisou?
-Avisei sim.
-Entendo, e como ela tá?
-Tá bem, tá ótima na verdade. Ela deve ter a sua idade.
-Que bom.
-Você acha que ele me mandaria embora?
-Não é isso que os chefes fazem com os funcionários que não servem mais para o trabalho?
-Eu sirvo para o trabalho.
-Não é isso que ele vai pensar se você voltar com o envelope dizendo que o endereço não existe.
-Eu não vou mentir, qualquer coisa ele pode vir pessoalmente conferir.
-Você acha mesmo que ele viria até aqui?
-É bem longe, né?
-Sim.
-O que eu faço?
-Procure outro emprego.
-Com a minha idade?
-Então minta, é a única salvação.
-Eu não posso fazer isso, se ele me pega mentindo, aí mesmo que ele me manda embora.
-Ele vai te mandar embora de qualquer jeito.
-Porque você diz isso?
-Se ele não quisesse te mandar embora, ele não te faria perder tempo indo atrás de um endereço que nem existe, pra entregar um envelope que nem sabemos o que tem dentro. Já parou pra pensar que pode não ter nada aí?
-Como assim?
-Abre o envelope, vamos descobrir se é um teste. Se não tiver nada dentro ele realmente estava te testando!
-Não posso, já disse, preciso do meu emprego.
-Você quem sabe.
-Sim.
-Boa sorte.
-Obrigado pelo café.
Texto por Alex Peguinelli.
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